O Amor Que Não Se Nomeia
Desta vez, Clara nasceu como Helena.
Veio ao mundo em uma manhã chuvosa, numa cidade pequena, onde o céu parecia mais perto da terra. Cresceu entre livros usados, tempestades de verão e o cheiro de bolo que sua avó fazia nas tardes de domingo. Era uma criança estranha, no melhor sentido: dessas que olham as árvores como se elas falassem, que ouvem o silêncio como se ele dissesse segredos.
Helena não lembrava de suas vidas passadas. Não lembrava que já tinha sido anjo, nem de todo amor que um dia carregou. Mas havia algo nela — uma gentileza que parecia não caber no mundo. Um cuidado com as palavras, um amor por tudo que era pequeno e esquecido.
Ela se tornou professora. Ensinava literatura em uma escola de bairro. Não tinha filhos, nem um grande amor para chamar de seu, mas era dessas pessoas que mudam vidas sem saber. Os alunos confiavam nela, os vizinhos pediam conselhos, os cães da rua a seguiam sem motivo.
Clara — agora Helena — não procurava mais o amor. Mas ele, como a vida, é insistente.
Certa manhã, ela conheceu um homem chamado Samuel. Era pai de um de seus alunos. Viúvo, calado, um pouco perdido no mundo. Ela não sentiu um arrepio, nem uma música tocar ao fundo. Não houve mágica. Só uma conversa sobre um trabalho escolar… e, dias depois, outra conversa, desta vez sobre jazz. E mais tarde, sobre saudades.
Com o tempo, foram se aproximando. Mas não era um amor épico, desses que surgem em livros. Era um amor cotidiano. Feito de chá no fim do dia, de silêncio confortável, de uma manta dividida no sofá.
Helena, sem saber, havia reencontrado algo de Clara. Não ele — o anjo perdido — mas o reflexo de tudo que ela havia aprendido. Amar sem se perder. Estar sem cobrar. Ser sem esperar.
Às vezes, quando o céu ficava muito limpo, ela tinha sonhos estranhos com asas. Sentia saudades de algo que nunca viveu. Uma nostalgia suave, como se parte dela ainda pertencesse ao céu.
Mas então Samuel colocava um disco antigo para tocar. Ou seu aluno escrevia um poema sobre a beleza do silêncio. E ela sorria. Porque, no fundo, sabia:
Ela já estava exatamente onde precisava estar.
Lembranças que Vêm com o Vento
Helena estava acostumada a viver entre páginas. Era professora, mas também era uma guardiã de histórias — das que lia, das que escutava e das que nunca contava a ninguém. Mas ultimamente, algo nela andava inquieto. À noite, sonhava com cidades que não conhecia, com línguas que não falava, e, sobretudo, com a sensação inconfundível de ter esquecido algo importante.
Ela sonhava com céu.
Mas não como os outros. Não com nuvens fofas ou sol dourado. Sonhava com céu como se fosse casa. Como se tivesse deixado lá alguém que a esperava, ou talvez… que ela já tivesse escolhido deixar para trás.
Certa tarde, depois de uma aula especialmente sensível sobre Clarice Lispector, uma aluna se aproximou dela no corredor e disse:
— Professora, às vezes a senhora fala umas coisas como se soubesse o que a gente sente antes mesmo da gente saber.
— Não sei, não — ela respondeu, rindo. — Eu só escuto bastante.
A menina franziu a testa.
— Não é isso. É como se a senhora… fosse de outro tempo. Ou de outro lugar.
Helena congelou por um segundo. Aquela frase ecoou mais do que devia. Um arrepio suave subiu-lhe pela espinha. E por um breve instante, ela viu — não com os olhos, mas com a alma — uma mulher com asas brancas, caminhando entre pessoas e deixando flores invisíveis por onde passava.
Ela piscou e a visão se foi. Mas algo dentro dela se acendeu.
Naquela noite, pegou um caderno em branco e escreveu, como se sua mão soubesse mais do que sua mente:
“O amor que deixei voar, voou para dentro de outros. Não era para ser só meu. Era para ser de todos.”
As palavras vinham com uma fluidez assustadora. Como se estivessem apenas esperando que ela as libertasse.
Nos dias que seguiram, Helena começou a lembrar. Não como quem revê uma foto antiga, mas como quem reencontra uma emoção. Uma presença. Uma essência.
Ela não falava com ninguém sobre isso. Só escrevia. Em cadernos, nas margens de livros, em bilhetes que deixava dentro das mochilas dos alunos. Pequenas mensagens que pareciam brotar de outro lugar:
“Você é amado, mesmo quando não vê.”
“Às vezes, a missão não é encontrar, mas acender luzes onde ninguém olha.”
“Não é todo anjo que precisa voltar voando.”
Samuel percebeu. Não nas palavras dela, mas no olhar. Helena parecia mais… completa. Como se tivesse reencontrado uma parte dela mesma. Ele não perguntou nada, mas certa vez, ao vê-la olhando para o céu com olhos úmidos e serenos, disse apenas:
— Seja de onde você veio, ainda bem que escolheu ficar aqui.
Helena sorriu.
Ela não lembrava tudo.
Mas lembrava o suficiente para saber que, nesta vida, não precisava procurar. Só precisava ser luz.
E isso… ela já era.
Continua....
Lindo o retorno de Clara/Helena nesta sensibilidade angelical, sentir com os olhos, falar com arvores, reencontrar o amor dentro de si. Fazer feliz parece ser mais importante que ser tão somente.
ResponderExcluirBelo texto que faz reflexão da nossa travessia, dos planos de nossas vidas Fernandinha.
Gostei de voltar e seguir as asas do silencio, que grita ao mundo.
Bom estar aqui amiga.
Bjs e paz.
Querida Nanda, li os três capítulos das asas em silêncio e achei lindo, emocionante... Teu jeitinho de escrever encanta sempre! Obrigadão pelo carinho peloa perda que tive! Tânia descansou e está agora rodopiando, dançando no céu... beijos, feliz Páscoa! chica
ResponderExcluirOlá, querida amiga Fernanda!
ResponderExcluir"Às vezes, a missão não é encontrar, mas acender luzes onde ninguém olha.”
Procurar talvez seja nossa maior missão.
Na vida eterna, teremos o Encontro.
Estou adorando ler cada texto.
Retiro uma mensagem para mim e saio contemplada.
Parabéns pela escrita reflexiva!
Tenha um tríduo pascal abençoado!
Beijinhos fraternos