Outro dia, esqueci o guarda-chuva em casa. O céu estava claro, não havia motivo para carregar peso. À tarde, quando a chuva desabou sem aviso, me abriguei na porta de uma padaria juntamente com outra moça. E ficamos ali, até que uma senhora se aproximou com um guarda-chuva enorme e colorido. Perguntou se estavámos indo longe e, sem esperar resposta, ofereceu metade do abrigo. A moça resmungou por causa da chuva e não aceitou.
Seguimos juntas a sra e eu até a esquina. Não nos falamos muito, apenas dividimos o caminho. Quando me despedi, ela disse: “Fernanda, é bom não andar sozinha na chuva”. Sorri, agradeci e segui, molhando um pouco mais os sapatos do que gostaria, mas estava tão feliz.
No fim do dia, fiquei pensando: Nossa! Como ela sabia o meu nome? Quantas vezes eu já chamei de acaso esse tipo de encontro? Mas quantas vezes percebi que havia um cuidado maior por trás, discreto, quase tímido, mas presente? Talvez coincidência seja apenas o nome que damos à delicadeza de Deus, quando Ele resolve andar devagarinho, "escondido" em pequenos gestos como um guarda-chuva compartilhado com uma estranha na esquina.
Fernanda
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depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)