Poema
A tarde despe o céu com lerdeza,
num gesto de paixão que demora
vai desabotoando o dia
como quem guarda um segredo antigo
no bolso do casaco.
Lá no fundo do quintal do tempo,
o sol já tateia as sombras, e a noite,
feito mulher indecisa, chega devagar,
com seus olhos de mistério e perfume de jasmim.
A cidade cochicha
coisas que não ousa dizer em voz alta.
As janelas se acendem feito confidências,
e há um silêncio nos telhados que só os poetas entendem.
Ah, a noite…
Essa moça cheia de véus
que dança sozinha no espelho da alma,
esconde promessas nas esquinas e espalha sonhos em forma de estrela.
Quem não a ama, não vive.
Quem não a teme, não sente. Quem não a escuta,
perde a chance de conversar com Deus.
Porque é à noite
que o coração fala mais alto,
que a ausência tem gosto de vinho,
e que a saudade, enfim, senta no sofá da sala.
Fim de tarde…
é quando o dia se curva em prece para deixar a noite passar.
Fernanda
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depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)