Busco compreender mesmo sem entender. A vida me deixou num orfanato, disseram que me viriam buscar em dois dias, mas não vieram. E pelo que contavam eu só tinha uns dois meses. E eu fiquei lá, crescendo, contando as horas, sentindo os dias pesarem nos ombros de uma menininha que não sabia ainda que a solidão poderia ser uma professora dura. Foi assim que, aos quatro anos, fugi. Não suportava ficar de joelhos no milho, ouvindo o mundo passar sem me incluir.
Fui menina de rua até os quatorze anos. E é claro nesse tempo, já pintei o rosto de graxa para parecer menino, já guardei folhas soltas encontradas na lixeira. Guardava na igreja como quem guarda tesouros aqueles cadernos eram meus segredos, meus alfabetos, minhas rota para um mundo que ninguém mais veria. A rua me deu lições que ninguém na escola ensinaria: fazer castelos na areia, observar cada conversa, perguntar o que não sabia e ouvir respostas com atenção e fazer de degrau.
Houve quem cruzasse no meu caminho e fizesse a diferença. Dona Joana foi uma das, senhora que me encontrou num banco de praça, pediu que cuidássemos uma da outra, e eu topei. Fui sua cuidadora, sua sombra e seu riso até o dia em que ela partiu para o Céu. Daí, fui expulsa da casa pelos filhos que nem lembravam da mãe, não lhe visitavam, não procuravam por ela. Eu naquele dia sofri muito! Porque a amava como a mãe que não tinha. Lembro que, chovia tanto naquele dia, e a chuva parecia lavar a pouca força que ainda me restava. Fiquei doente, mas aprendi que até na tempestade é possível sobreviver.
Um dia, na praia, encontrei meus pais de férias. Encantaram-se comigo, com meu jeito franco, com a menina que a rua moldou, mas que ainda guardava muita ternura nos" bolsos". Fizeram de tudo para me adotar, e conseguiram. Morei com eles dos quatorze aos quinze anos, até me casar.
Mas posso dizer:a rua, no entanto, deixou marcas e ensinamentos que nunca desapareceram: a prudência de quem conhece a dor, o amor ao próximo como quem sabe o peso da solidão, a verdade como escudo e Deus como proteção.
Hoje, busco compreender mesmo sem entender. Busco a vida em cada gesto, em cada lembrança, sabendo que os caminhos que pareciam perdidos me ensinaram a caminhar. E que, no fim, até a menina que fugiu do milho encontrou seu lugar no mundo.
Me casei aos quinze anos como já relatei, com um rapaz maravilhoso, por nome Felipe. Tinha um sorriso que me fazia esquecer de onde eu viera e um olhar tão sereno que parecia dizer: agora você tem casa, menina. Ele me chamava de sua “flor teimosa”, porque, mesmo com o vento contra, eu continuava a florescer. Ele fazia medicina. E o pai dele, era dono de uma clinica.
Fomos muito felizes. Nossa casa tinha cheiro de bolo simples e som de risada de criança. Adotamos algumas, porque o coração, quando conhece o abandono, aprende a reconhecer no outro o mesmo vazio e quer preenchê-lo com amor. E, como se a vida ainda quisesse me provar o milagre, eu fiquei grávida de trigêmeos.
Era um tempo de sonho, de esperança plantada. Felipe me ajudava a escolher os nomes, fazia planos, falava com a barriga como quem falava com o próprio futuro. Mas a vida, que às vezes é mais dura do que deveria, levou Felipe por causa de uma apendicite que virou urgência e, depois, silêncio.
Ele curtiu pouco as crianças.
Naquele dia, o mundo desmoronou na minha cabecinha. Eu olhava para o teto e não via nada só um vazio que doía por dentro. As crianças me cercavam e eu sorria por fora, mas por dentro eu só queria dormir e acordar num lugar onde o amor não terminasse.
Felipe virou estrelinha, como diziam as histórias que eu contava para acalmar os pequenos sobre dona Joana. E eu fiquei ali, tentando entender o que não se entende: como alguém tão cheio de vida pode caber, de repente, no céu?
Mas a fé essa companheira antiga foi me levantando pelas mãos. Eu lembrava de tudo o que a rua me ensinou: que o amor é mais forte que a ausência, que a dor não é o fim, e que Deus sempre dá um jeito de acender uma luz no meio da escuridão.
Hoje, quando olho para o Céu e vejo uma estrela brilhar mais forte, sei que é ele, meu Felipe, ainda cuidando de nós. E sigo buscando compreender, mesmo sem entender.
Minha arma é a verdade. Sempre foi. Não aprendi a fingir, nem a inventar rostos que não existem dentro de mim. O que sou nos comentários, sou na vida real. Escrevo do mesmo jeito que falo, e quem me conhece sabe. Meu pai mesmo, de vez em quando, deixa um comentário aqui no blog e eu sorrio. Eles leem tudo. Às vezes me pego pensando se sentem orgulho, se enxergam, nas minhas palavras, aquela menina que um dia dormiu na calçada e ainda assim acreditava em Deus.
Mas eles enxergam.
Algumas situações me deixam triste. É que eu não compreendo a arrogância, nem as facetas do mal. Talvez porque eu tenha conhecido demais o outro lado o da falta, o da necessidade, o do prato vazio. Quando se tem fome, não sobra espaço para a soberba. A gente aprende a ser simples, a dividir o pouco, a agradecer o mínimo.
Ensino meus filhos a serem bons e prudentes, como tento ser sempre. Mas confesso: não consigo ser brava, nem arrogante. Meu coração é desses que doem fácil, que se machucam por empatia. Às vezes penso que isso é fraqueza, mas logo entendo: é força. Ser bom num mundo que insiste em ser duro é uma forma de resistência.
Muitos se enganam com as pessoas que vieram das ruas. Acham que falta neles algo, quando na verdade sobra, sobra verdade, sobra solidariedade. Quem já teve a barriga roncando de fome sabe o valor de um pedaço de pão, de um olhar sincero, de uma mão estendida. É claro que há exceções, mas as exceções não apagam a luz dos que aprenderam a viver com pouco e ainda assim escolheram o bem.
Nunca me acomodei. Mesmo pequenina, trabalhava para me alimentar. Catava papel, carregava sacolas, ajudava na feira, fazia o que fosse preciso, mas que fosse com honestidade.A coisa certa para sobreviver. E talvez seja por isso que hoje, quando alguém me pergunta de onde vem essa força, eu sorrio e digo: vem em primeiro lugar do alto, da fome que um dia eu senti, e do amor que um dia me encontrou.
Porque, no fim, foi isso que me salvou: a fé, a verdade e o amor.
Minha história é muito comprida. Há alguns amigos por aqui, que a conhece de anos. Porque este blog sempre foi o meu diario de bordo.
Fernanda
Um texto profundo e cheio de sensibilidade 🌿. Gostei da forma como expressas a busca interior, esse querer compreender o que, por vezes, escapa à razão. Há beleza na incerteza e força na reflexão.
ResponderExcluirCom carinho,
Daniela Silva 💜
alma-leveblog.blogspot.com
Visita-me também no meu cantinho!
Te acompanho há muito tempo,Acompanhei teu namoro, noivado e casamento com Felipe! Torci muito.Foiquei triste, chorei quando ele partiu. A família da D.Joana foi terrível ao não cuidar dela, e nem ser grata a ti!
ResponderExcluirMas tudo tem seu tempo e tu com tua família são hoje muito felizes e isso nos deixa assim também! Merecem todos! Lindo fds!
beijos praianos, chica