Se eu fosse pintor, desses que observam o mundo pelas frestas da luz e pelas rugosidades silenciosas das coisas, eu diria que o Evangelho é a maior tela já estendida diante de nós.
Eu o pintaria não como um livro antigo, mas como uma paisagem viva.
Jesus, para mim, seria um foco de luz movente não uma luz estourada de holofote, mas aquela que se espalha em tons de amanhecer, revelando o que antes estava oculto. Essa luz tem algo de artesão: toca tudo com cuidado, dá profundidade aos que estavam achatados pela dor, devolve cor aos que se julgavam sem pigmento.
Eu pintaria os encontros, porque eles são a alma da história:
a mulher que estende as mãos,
o cego que tenta adivinhar o contorno da própria esperança,
o pescador que larga a rede como quem larga uma sombra antiga.
Cada gesto Dele tem a delicadeza de um pincel molhado, aproximando céu e terra com uma suavidade que não cabe em palavras.
Se eu fosse pintor, mostraria que os Evangelhos não são quadros estáticos pendurados nas paredes do tempo são obras em movimento. Em cada capítulo, Jesus mistura cores improváveis: misericórdia com firmeza, verdade com ternura, simples com profundo.
Nenhum mestre da minha profissão ousaria combinar tons assim.
Também deixaria espaço para o silêncio porque o silêncio é a moldura do sagrado. Há cenas em que Ele não diz nada, apenas olha. E esse olhar, sozinho, ilumina mais do que qualquer clarão.
E, se me pedissem para assinar a obra, eu hesitaria.
Porque um pintor apenas registra a luz não a cria.
O Criador, esse sim, sabe escolher nuances que nós mal compreendemos:
a cor exata do perdão,
o brilho do recomeço,
a sombra suave da humildade,
o dourado quase abstrato da fé.
Se eu fosse pintor, diria que o Evangelho é a arte mais viva que já tocou o mundo.
Mas como sou apenas Fernanda, alguém que tenta enxergar melhor, fico aqui, diante dessa tela infinita, deixando que ela me pinte um pouco todos os dias.
Fernanda
A tela infinita de Deus é esse horizonte sem moldura
onde a vida se pinta sozinha, sempre maior do que nossos olhos conseguem ver.

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depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)