Hoje, no meio das prateleiras do mercado, fui surpreendida. Uma senhora se aproximou de mim e disse que tinha ouvido no ouvido dela não com os ouvidos do corpo, mas com aqueles da alma que precisava de um abraço meu.
Por um instante, fiquei perplexa. André, que estava comigo, arregalou os olhos como quem presencia um segredo sendo revelado em plena fila de compras. Mas não havia muito a pensar: me agachei e a abracei.
Naquele gesto simples, o tempo pareceu parar. O abraço foi mais do que contato: foi encontro. Como se duas histórias se reconhecessem sem nunca terem se visto antes.
E, curiosamente, fui eu quem saiu presenteada. Aquele abraço me devolveu um tipo de alegria serena, como se tivesse vindo direto de Deus, embrulhado em ternura e entregue por meio daquela senhora.
Pensei depois: quantas vezes passamos pelas pessoas sem perceber a imensidão que cabe num gesto? Um abraço pode ser oração, pode ser cura, pode ser resposta. Talvez ela precisasse de mim, mas naquele instante percebi que eu também precisava dela para lembrar que somos instrumentos uns dos outros.
Voltei pra casa leve, carregando comigo a certeza de que não foi acaso. O abraço tinha endereço certo: era para ela, mas também era para mim.
E André, já dentro do carro, me olhou sério e disse: Amor, você provoca carinho nas pessoas. Isso é preocupante às vezes… vai que um homem chega pedindo um abraço seu?
Sorri. 😊Não respondi de imediato. Fiquei pensando no que ele tinha dito, na delicadeza e também na preocupação escondida em suas palavras. Depois, apenas disse:
O abraço de hoje não foi meu. Foi de Deus, emprestado. Eu só obedeci.
Ele me olhou, balançou a cabeça e suspirou como quem aceita, mesmo sem entender por completo. E eu, por dentro, sabia: o mundo anda tão carente que, quando a ternura encontra espaço, ela se manifesta. Não tem roteiro, não tem lógica, só acontece.
Um abraço pode parecer tão pouco. Mas naquele instante, diante da senhora e depois diante do André, percebi que abraçar também é ato de coragem. É abrir o peito sem defesas, é permitir que a vida nos atravesse.
E, enquanto o carro seguia, pensei que talvez essa seja minha missão silenciosa: espalhar carinho, mesmo que às vezes cause estranhamento. Porque, no fundo, é disso que todos nós precisamos de um gesto simples que nos devolva à condição mais humana de todas: a de sermos amados.
E, enquanto o carro seguia, senti que não era eu quem oferecia abraços: era Deus, encontrando caminhos nos gestos mais simples. Um abraço dado, outro recebido, e pronto o Céu se fez presente no corredor do mercado. Talvez essa seja a verdadeira missão: deixar que o amor divino nos atravesse e alcance quem mais precisa, ainda que a gente não entenda os porquês.
Olhei para André, que ainda parecia intrigado, e brinquei:
Amor, se um homem me pedir um abraço, você me protege… ou entra na fila?
Ele riu, balançou a cabeça e me puxou para perto, como se respondesse sem palavras.
E foi assim: o mercado ficou para trás, mas o abraço permaneceu primeiro da senhora, depois dele, e por fim o meu, em silêncio, agradecendo à vida por nos permitir esses encontros improváveis.
Fernanda
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depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)