Sempre me perguntei se Alice sonhou tudo aquilo ou se, no fundo, era o mundo real que estava sonhando Alice. Porque tem dias em que a lógica parece escorregar por entre os dedos e o que resta é uma sensação de leveza desconfiada, como se a realidade estivesse de ponta-cabeça mas continuasse exigindo que a gente sorria para a foto.
Alice caiu no buraco. Eu, cá entre nós, já caí em tantos que até perdi a conta. Buracos menos poéticos: reuniões infindáveis, promessas não cumpridas, filas de banco, conversas mornas e domingos à tarde. Mas há buracos que, como o da Alice, nos convidam a ir além do óbvio. E é ali que começa a transpor.
O País das Maravilhas pode ser um bairro desconhecido onde alguém te oferece café passado na hora e um pedaço de bolo com gosto de infância. Pode ser uma conversa entre estranhos no ponto de ônibus, que termina em riso cúmplice. Pode ser aquele momento raro em que você dança sozinha na cozinha, com meia furada e tudo, só porque tocou aquela música.
Maravilhas, às vezes, têm cara de desordem.
Alice cresceu e encolheu, várias vezes. E eu entendo isso profundamente. Tem dias em que me sinto enorme, ocupando o mundo com ideias e desejos. E tem outros em que caberia dentro de uma xícara daquelas de chá inglês com florzinha na borda. A gente se estica e se retrai, conforme os afetos, os silêncios e os absurdos diários. Talvez viver seja isso: desaprender a ser sempre do mesmo tamanho.
E tem o Chapeleiro Maluco. Figura injustiçada, a meu ver. Porque ele só queria tempo. Só isso. Um tempo que não fosse controlado pelos ponteiros, nem marcado por metas. Um tempo de chá, de conversa sem propósito, de olhar perdido no nada. Não é exatamente isso que a gente anda precisando? Um pouco de loucura que cure?
E a Rainha de Copas? Ah, essa é fácil de encontrar por aí. Grita, manda cortar cabeças, exige obediência cega. Está nos chefes autoritários, nas vozes internas que cobram perfeição, nas normas sem sentido que seguimos por hábito. Mas sempre me encantou o fato de que, no fundo, ninguém realmente levava a rainha a sério. Talvez a rebeldia comece quando a gente entende que o medo tem mais pose do que poder.
No fim das contas, Alice volta. Sempre volta. Como quem acorda de um sonho absurdo e, ainda assim, guarda um pedacinho dele no bolso do casaco. Porque viver nesse mundo aqui exige mesmo um pouco de loucura, um punhado de imaginação e a ousadia de fazer perguntas que ninguém tem tempo de responder.
E talvez a mais importante delas ainda seja:
“Quem sou eu?”
(Se descobrir, me conta. A gente toma um chá.)
"Porque viver nesse mundo aqui exige mesmo um pouco de loucura" - Sim. Em um mundo que em si é louco, nós precisamos ser um pouco, para resistir a todo o resto.
ResponderExcluirDell, é isso!
ExcluirNo meio desse mundo meio torto, ser um pouco louco é quase um gesto de sanidade. Talvez a nossa “loucura” seja, na verdade, o que nos salva: rir fora de hora, amar sem manual, dançar sem música e seguir, mesmo assim. Porque resistir, às vezes, é não se adaptar. E nisso, somos mestres.
Obrigada 🙏🏻
Com carinho,
Fernanda!
Querida Fernanda, nós moramos no país das Maravilhas! 😅
ResponderExcluirSinto-me Alice porque moro num lugar muito seguro, de dar inveja à qualquer país do mundo. Tudo anda bem conforme grita nossa Constituição Federal. 🙄
Sou feliz e despreocupada e vivo numa sociedade harmoniosa. E como eu, vivem assim mais de 200 milhões de brasileiros!
Há povo mais feliz do que o nosso ao cantar Aquarela do Brasil? Oh, Deus, que lindo! E o Carnaval? Que luxo! Aquilo é o retrato do nosso cotidiano, uma fila interminável de reis e rainhas rodopiando de felicidade.
Nosso povo é muito feliz! 😊🙏
Desculpa o meu tom, Nanda, essa é a nossa verdade!
Tais, tua ironia afiada diz muito mais do que mil dados estatísticos. É um espelho bem polido que nos faz rir de nervoso e pensar. Esse “país das Maravilhas” que tu descreve, com suas festas, hinos e fantasias, muitas vezes serve mesmo de cortina para esconder o abismo entre o discurso e a realidade. E tua forma de apontar isso, com humor e lucidez, dá um nó gostoso na garganta: a gente ri, mas sabe. É preciso coragem pra usar a ironia como forma de resistência e a tua tem força e consciência. Que bom te ler assim: com leveza crítica e a verdade bem amarrada nas entrelinhas.
ExcluirUm abraço atento e admirado,
Fernanda 😘