Começou ontem às 19h03, com o primeiro caso de uma criança febril que a mãe jurava ser dengue, sarampo, ou olho-gordo.
O dia foi de correria.
Faltavam ainda onze horas e cinquenta e sete minutos para o fim do plantão e eu já queria fugir para um cafezinho.
Na triagem, uma senhora me contou que estava com palpitações desde a morte do marido. “Tem mais de vinte anos, doutora, mas às vezes ainda escuto o chinelo dele pela casa.” Eu anotei “taquicardia emocional”, mas o que me veio foi: saudade dá sintomas físicos, sim.
O ar-condicionado resolveu parar de funcionar no mesmo momento em que chegou um homem com febre, tosse, e o ego inflamado. “Doutora, sei que isso aqui é só uma virose, mas eu sou advogado, entende? Não posso me dar ao luxo de ficar fraco.
Entendi senhor.
Você não vai fazer exames de imagens? Estou esperando horas lá na recepção. Não posso como já disse enfraquecer.
Pedi que se acalmasse.
Eu quis dizer que fraco ele já estava de empatia. Mas sorri, receitei um antitérmico e pensei em quanto custa, por dentro, esse tipo de gentileza automática.
Às duas da manhã, a luz da sala de medicação piscou três vezes e apagou. A enfermeira disse que era o prédio avisando que também estava exausto.
No leito improvisado do corredor, um senhor dormia de boca aberta. Ressonava. Ronco grave, compassado. O som mais humano da madrugada. Tirava a concentração mas era reconfortante ao mesmo tempo.
Dei três plantões em um só.
Mas então, às 6h14, uma adolescente me escreveu um bilhete antes de receber alta. “Obrigada por não tratar minha dor como frescura.” Dobrei o papel, guardei no bolso do jaleco e segui.
Ser médica é isso: colher pequenas migalhas de sentido enquanto o mundo desaba ao seu redor.
Hora de ir para casa.
Cheguei em casa.
A porta se abriu e, antes mesmo de tirar os sapatos, fui tomada por um turbilhão de risos e pequenos corpos que me agarravam com força.
“Mamãe, mamãe! Hoje tem historinha, né?”
Os olhinhos brilhavam de expectativa, os abraços apertavam minhas pernas cansadas, e naquele instante eu me senti o centro do universo mesmo com o corpo exausto e a cabeça rodando.
“Sim, amores, tem sim,” respondi com um sorriso que tentava esconder o cansaço, “mas mamãe precisa de um banho primeiro, tá? Já volto.”
Enquanto caminhava para o banheiro, ouvi o burburinho alegre lá da sala, a promessa de histórias, risadas e abraços que esperavam por mim.
Naquele momento, entre o suor do plantão e o calor do lar, entendi que ser mãe é esse delicado equilíbrio: cuidar de tantos outros corpos durante o dia, para voltar a cuidar do que mais importa quando a minha noite em casa chega.
O banho foi rápido, mas suficiente para tirar o peso dos últimos cansaços. Voltei para eles, pronta para virar personagem, leitora e porto seguro mesmo que a voz tremesse de cansaço.
Porque, no fim das contas, o plantão termina, mas a missão de mãe nunca acaba.
E amanhã… tem outro plantão, mais uma história para contar, mais um abraço para ganhar.
Fernanda
Nenhum comentário:
Postar um comentário
depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)