Nunca fui do tipo que entra numa biblioteca e vai direto à prateleira certa. Eu me perco. Deliberadamente. É como se, ao atravessar a porta, algum portal silencioso me sugasse para dentro de um mundo onde o tempo não existe. Há quem tenha fetiche por sapatos, bolsas ou perfumes; o meu é por estantes. Longas, altas, alinhadas ou meio tortas, com livros inclinados, alguns empilhados horizontalmente, como se tivessem perdido a vontade de ficar de pé.
O fetiche não é só pelo objeto-livro, mas pelo cenário todo: o cheiro de papel envelhecido, a poeira que dança nas frestas de luz, o sussurro de páginas viradas ao longe. Tudo isso me provoca uma espécie de vertigem boa, uma ânsia de tocar, abrir, folhear, descobrir.
Em bibliotecas, não tenho pressa. Passo a mão pelo dorso dos volumes como quem acaricia um animal adormecido. Leio títulos como quem espia cartas de amor alheias. Abro ao acaso, na esperança de que alguma frase salte e me escolha porque, sim, às vezes é o livro que nos escolhe.
E quando isso acontece, sinto quase um rubor. É como se eu tivesse sido pega em flagrante num romance proibido: eu, o livro e aquele pacto silencioso de nos acompanharmos para casa.
Talvez seja isso que me fascina tanto: em meio a tantas histórias, sempre existe a chance de encontrar uma que me leia de volta.
Quando saio da biblioteca, às vezes com um livro debaixo do braço, sinto uma espécie de leveza misturada com peso o peso dos mundos que carrego comigo. É curioso pensar que, embora as palavras estejam ali, inertes, é dentro da gente que elas ganham vida, cor, cheiro e som.
E não é só pelo prazer da leitura. É pelo refúgio. A biblioteca é um lugar onde posso ser invisível e, ao mesmo tempo, me encontrar inteira. Onde a pressa do mundo lá fora diminui e o tempo parece se esticar, como um elástico que não quer mais voltar ao tamanho normal.
Ali, entre paredes recheadas de histórias, me lembro de que o coração humano, assim como o mar, tem suas tempestades, suas marés e suas profundezas. Mas também tem pérolas aquelas descobertas raras, doces e inesperadas que só aparecem para quem se atreve a mergulhar.
Meu fetiche por biblioteca é, no fundo, meu fetiche pela esperança. Pela possibilidade de que, a cada página virada, a gente pode se reinventar, se curar, se apaixonar ou simplesmente se reconhecer.
E é por isso que, sempre que posso, volto para lá. Para esse lugar onde a palavra é abrigo e a leitura, um reencontro com a própria alma
Fernanda
Lindo e interessante este fetiche, viver esta sublime emoção de encontrar-se em livros, poemas, canções. Este sentir que parece ter escrito para nós é motivador e inspirador, como certas canções que nos envolvem num transe, como se o compositor soubesse tudo de nós e assim desnudando nossa vida para todos. Se há rubor, há emoção e o importante, é que esta sobreviva Fernandinha.
ResponderExcluirBoa e linda semana iluminada.
Bjs e paz no coração amiga.
Toninho tão querido,
Excluirque sensibilidade bonita a sua. Gostei muito de como você descreveu essa mágica de se encontrar nas palavras alheias sejam elas de um livro, de um poema ou de uma canção. É verdade: quando a emoção nos envolve, parece mesmo que alguém traduziu nossa alma sem pedir licença. E que bom que seja assim, porque é desse encontro entre palavra e sentimento que nasce a inspiração para continuar sentindo, vivendo e criando.
🙏🏻😘
Boa noite de domingo, querida amiga Fernanda!
ResponderExcluirVou lhe falar baixinho: fui doar uns livros na biblioteca municipal de uma cidade onde morei e recebi um convite...
Minha vida literária mais profunda começou numa biblioteca.
Leio desse que fui alfabetizada, mas o gosto que você sente e aqui foi colocando os sentidos despertos pelos livros, com sua riqueza de detalhes, só tomei com o tempo. Já no término do primeiro grau, tomei gosto pelos versos.
Durante minha vida escolar, só biblioteca do colégio.
Trabalho, escola, filhos, marido e casa, ufa! Até me aposentar e ler ininterruptamente até hoje. Lá se vão trinta anos...
É um fetiche que vale a pena investir.
Faz muito bem em fazer piruetas para não perder tal fantasia salutar e valorosa...
Toda sinestesia despertada pelo seu texto deu para sentir seu amor aos livros.
Quem ama, seja o que for, quer mais e mais..
Tenha uma nova semana abençoada!
Beijinhos com perfume de livro novinho.em folha
Roselia querida,
Excluirque encanto o seu relato!
É como se eu tivesse passeado com você por cada fase da sua vida literária a menina alfabetizada, a estudante entre livros de colégio, a mulher dividida entre trabalho, casa e família, e agora essa leitora que pode se perder sem culpa nas páginas. Dá para sentir, nas suas palavras, que o amor aos livros não é só hábito: é abrigo, alimento e até companheiro silencioso. E como você disse tão bem, quem ama quer mais… sempre mais. Que suas estantes sigam sendo jardins onde você colhe histórias e espalha sonhos.
🙏🏻😘
Bibliotecas, assim como museus, são espaços especiais. De fato, é como nos transportasse para outra dimensão, ou para épocas não vividas que acabamos vivendo de certa forma ao abrir um livro (ou ligar um Kindle).
ResponderExcluirMas é mesmo como você falou: não é tanto pelo objeto-livro, é pela aura do lugar.
Abraços e boa semana.
Eduardo,
Excluiré exatamente isso a magia não está só no papel ou na lombada, mas no ar que se respira dentro de uma biblioteca. É como se cada prateleira guardasse portais prontos para nos levar a vidas que nunca vivemos e tempos que nunca tocamos, mas que passam a fazer parte de nós. E essa “aura do lugar” que você citou é o que transforma a simples leitura em uma experiência quase sagrada. Abraços e que a sua semana também seja cheia de bons mundos para visitar.
🙏🏻😘
Olá Fernanda.
ResponderExcluirJorge Luis Borges disse:
Há aqueles que não podem imaginar o mundo sem pássaros,
há aqueles que não podem imaginar o mundo sem água;
ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.
Os livros não matam a fome, não suprimem a miséria, não acabam com as desigualdades e com as injustiças do mundo, mas consolam as almas, e fazem-nas sonhar. Os livros não matam a fome, não suprimem a miséria, não acabam com as desigualdades e com as injustiças do mundo, mas consolam as almas, e fazem-nas sonhar.
Ao lermos um bom livro, abrimos as portas e janelas da alma, deixamos as palavras nos levarem para mundos encantadores e fazemos descobertas sem fim.
Por isso as Bibliotecas são uma fonte de sabedoria, e como tal, deveria ser como um local de culto, e a leitura um ritual de grande significado.
É excelente o teu texto Fernanda – aliás como todos – a lucidez das tuas palavras são um verdadeiro fascínio!
Te deixo um abraço enorme!
Albino,
Excluirque lindo você trazer Borges para essa conversa.
Sim, os livros não resolvem todas as dores do mundo, mas nos oferecem um refúgio onde a alma respira e sonha. É como se, ao folhear páginas, abríssemos não apenas portas e janelas, mas também passagens secretas para dentro e para fora de nós mesmos. Concordo que bibliotecas deveriam ser tratadas como templos, e a leitura, celebrada como um ato sagrado. Obrigada pelo carinho e por essa partilha tão rica. Um abraço enorme e cheio de histórias para contar.
🙏🏻😘