Ao som de Beethoven, eu descanso.
Não é um descanso de corpo, desses que a cama resolve. É um descanso mais profundo, desses que só a música sabe oferecer. As crianças já estão na cama, e a casa respira baixo, como se também estivesse aliviada pelo silêncio. A noite, enfim, me pertence. E a poesia que mora nas horas tardias começa a costurar seu manto sobre mim.
Lá fora, tudo é vasto.
O mundo parece dormir, mas eu sei que não.
Em alguma casa, alguém ainda chora escondido. Em alguma rua, um coração lateja pelo que não entende. E eu, aqui, entre pensamentos e sombras brandas, também me pergunto as coisas que não sei.
Por que alguns se zangam sozinhos?
Sim, por quê?
Quantas vezes fomos "culpados" sem saber o motivo. Quantas vezes alguém se afastou sem aviso, se fechou sem explicação, se magoou sem palavra. E a gente fica ali, no meio do campo de guerra emocional, segurando flores, sem entender de onde vieram as flechas.
A verdade é que somos todos universos complexos, uns cheios de intensidade, outros de silêncio.
Alguns sabem dar nome ao que sentem e outros apenas sentem, como quem carrega um arco-íris dentro do peito, sem saber o que fazer com tanta cor.
Há quem se afogue em ressentimento e não diga. Há quem disfarce o julgamento de opinião. Há os que ferem em nome de zelo. E há nós tentando amar direito.
Já se zangaram comigo e eu calada. Já fui mal interpretada. Já me doeu a alma por um gesto mal lido. E já me senti culpada por coisas que não sei se fiz.
Hoje, mais do que nunca, sei que nem sempre é falta de afeto. Às vezes é excesso de ferida. É o outro, atravessado por memórias que não têm meu nome, mas que projetam em mim. É o espelho da sua dor refletido no meu rosto.
Ainda assim, dói.
Dói não saber o que se fez.
Dói ter a melhor intenção e ver os olhos do outro se fecharem.
Dói pedir perdão sem saber a que culpa. E talvez doa mais ainda quando não nos dão nem o direito de perguntar.
Mas nessa dor também mora aprendizado.
Aprendo, cada vez mais, a não supor o que o outro sente. A ouvir com calma, a não tirar conclusões. Aprendo que ser afável, ser doce, não é fraqueza: é resistência. Que dar nome à mágoa é um ato de coragem. E que me afastar sem diálogo é repetir um ciclo que um dia tanto me machucou.
A maternidade me ensinou mais do que palavras. Me ensinou o silêncio atento. Me ensinou que não se zanga sozinho. Se algo dói, é preciso falar. Mostrar. Construir uma ponte em vez de cavar uma cova para o afeto.
E aqui estou eu, tentando entender o que não entendo. Tentando não azedar meu espírito com a frieza alheia. Tentando não herdar o gesto ríspido de quem nunca soube acolher.
Não quero ser quem finge não ver. Não quero ser quem não pergunta.
Nem quem larga.
Nem quem julga.
Ao som de Beethoven, a noite me devolve o que o dia me tirou: lucidez.
A beleza da música me lembra que tudo até a dor pode ser transformado em arte, em partilha, em palavras que talvez toquem quem também se pergunta:
“O que foi que eu fiz?”
E se você me perguntar, eu respondo. Se você me afastar, eu respeito. Mas saiba: não vou mais deixar que o silêncio me culpe por algo que nunca entendi.
Porque no fim das contas, todos carregamos algo:
um gesto mal interpretado,
uma palavra atravessada,
ou apenas a velha vergonha de sentir demais.
Mas que isso não nos roube a doçura. Nem o direito de tentar de novo.
Esse texto é só pra dizer, que voltar ao blog é a coisa mais preciosa para mim.
Eu amo escrever e aqui é meu divã.
A casa continua sendo nossa.
Volte quando quiser.
Boa noite de Paz, querida Fernanda!
ResponderExcluirPrimeiro a gente chora...
Depois, respira fundo e vem comentar.
Percebo que há pessoas que sentem como nós, nunca a vimos, mas é muito parecido o modo de sentir o que nos é feito.
"Quantas vezes alguém se afastou sem aviso, se fechou sem explicação, se magoou sem palavra. E a gente fica ali, no meio do campo de guerra emocional, SEGURANDO FLORES, sem entender de onde vieram as flechas."
Sim, muito bem dito por você:
"Tentamos amar direito ".
E não só tentamos... ouso dizer que amamos bem direitinho, com toda generosidade do nosso coração, dando tudo de nós, sem reservas e não resultou, mesmo assim.
Não estou falando só de marido, claro...
De um modo em geral.
A frieza tem o mesmo peso do abandono. E nós sabemos como pesa...
Quanto sabedoria sua ao escrever:
"Talvez doa mais ainda quando não nos dão nem o direito de perguntar."
Acrescento uma palavrinha: perguntar... nada.
"Me afastar sem diálogo é repetir um ciclo que um dia tanto me machucou."
Quando me mataram, eu não pude mais ressuscitar para seguir sendo abandonada.
Só ai a autoestima vence nossa dor aguda. Afastamo-nos rejeitadas e outros nos acolhem com amor.
Sentirmo-nos demais, doi demasiadamente e me poe de novo em lagrimas doloridas agora.
"Eu amo escrever".
Também, amiga
Sem a escrita, a dor de receber frieza por parte de quem amamos tanto e tanto seria ainda muito maior, certamente.
Não se trata só de casamento o que estou falando, sei que sabe...
Tenha um anoitecer e novo semana cheia de encantamento!
Na vida, sempre tem a natureza que nunca nos trata com frieza.
Beijinhos fraternos de gratidão e estima
🙏😇🤝💐😘
P.S. voltarei, tá?
Querida Roselia,
ExcluirObrigada por suas palavras tão sentidas.
Esse texto nasceu apenas como um exercício de escrita, não foi sobre uma vivência real, embora traga sentimentos que, de alguma forma, habitam todos nós.
Fico feliz que tenha tocado você essa é a beleza da escrita: mesmo quando não é vivida, pode ser verdadeira.
Com carinho,
Fernanda 🙏🏻
Nanda, escreves com o coração na ponta dos dedos, já te disse isso uma vez! Mas é bem isso! Consegues nos emocionar sempre, sejam casos reais ou fruto da inspiração! Belíssimo texto, mais um,aliás! beijos, lindo dia! chica
ResponderExcluirChica querida, obrigada por exatamente entender o que escrevi.Tuas palavras chegam como abraço apertado desses que aquecem e compreende o gênero mesmo à distância.Obrigada por me ler com esse olhar generoso, por perceber o coração que coloco em cada linha. Escrever é meu jeito de respirar, e quando alguém como tu sente o que escrevo, tudo faz ainda mais sentido. Um beijo imenso no teu dia, com todo meu carinho!
ExcluirNanda!
Um texto em tom de deabafo, mas que não apresenta soluções fáceis.
ResponderExcluirBom seria que tudo se resolvesse pelo diálogo.
Abraço de amizade.
Juvenal Nunes
Juvenal querido,
Excluirque bom te ler com essa escuta sensível. Embora, o texto apenas seja uma inspiração. Vou divagando e o texto sai. Bom, mesmo sabendo que o mundo não se conserta com palavras bonitas. Seria tão bom, não é?, se tudo se resolvesse pelo diálogo. Mas às vezes parece que a voz da paz chega sempre atrasada, abafada pelo barulho das armas, das vaidades, dos discursos inflamados. E no meio disso tudo, ficam os que só queriam viver em silêncio, com dignidade.
Não tenho respostas, nem soluções. Só essa vontade insistente de continuar dizendo que há outro caminho, mesmo que não saibamos direito como traçá-lo.
Recebe meu abraço com gratidão e amizade.
Seguimos. Sempre.
Fernanda
Essas elucubrações costumam sair em uma noite de insônia (ou não) com fundo musical de Beetthoven....rs
ResponderExcluirVocê pondera sobre coisas que realmente acontecem. O que eu fiz? E nada de resposta...antigamente eu ficava profundamente perturbado por alguém se afastar de alguma forma sem saber o porquê. Hoje não me preocupo tanto. Se a resposta ao "O que eu fiz" for silêncio, que seja. Se foi uma queixa que eu tenho por injusta e mostro isso e mesmo assim há afastamento, paciência, vá com Deus e seja feliz e me deixa quieto.
Ao som de Beethoven.
Eduardo, meu caro, suas noites insones com trilha sonora de Beethoven dariam um livro inteiro desses que a gente lê com um café na mão e um sorriso no canto da boca.
ResponderExcluirE o meu também se iguala rsrs
Mas sério agora.
Sim, também já me fiz esse “o que eu fiz?” Tanto que saiu um texto aleatório ontem. Com uma intensidade quase existencial, como se a alma precisasse de um mapa para entender ausências. Hoje? Ainda me pergunto às vezes, mas já não monto tribunal interno nem escrevo tratados emocionais para quem prefere o silêncio ao diálogo. Cada um tem escolha. E tá tudo certo! Desde que não 🙂↔️ levem minha paz na bagagem, por favor! 🙏🏻
E se voltarem, que seja com Mozart. Porque com Beethoven eu já gastei todas as fases da dor… 😂
Amei !
Abraço afinado,
Fernanda 🎼
E faz certo!
ExcluirPensei, Nanda, escreve por transpiração. Ela aprendeu a libertar o "gigante do alçapão" e o faz com maestria. Há dor, mas não há dor. Há reflexão. Há inflexão. Há doação. Parece que você precisa repartir estas inflexões com o outro. Precisa pô-las no papel para que o outro as leia e reflita que é a vida como ela é sem pensar em Nelson que estava sempre rodrigando com suas criações. Se escrevermos sem mexer com o outro não fará sentido, e sua intuição a leva pelos caminhos da "provocação", no bom sentido, para tirar-nos da zona de conforto. Você não quer nos vê sentado, isso é muito bom. Queremos mais, rsrs.
ResponderExcluirUm abraço, Nanda! Tenha um bom dia!
Eros, meu amigo, tua leitura generosa e delicada tocou de verdade. Talvez eu escreva mesmo por transpiração, sim, mas é dessas que vêm da alma, sabe? Porque tem coisa que só sai suando sentimento. Libertar o “gigante do alçapão” foi uma das melhores imagens mais bonitas que já me disseram. E é isso mesmo: tem uma força antiga aqui dentro que insiste em sair pelas palavras, como quem procura ar. Escrevo porque preciso partilhar essa inquietação que me atravessa. Porque me dói pensar que tanta gente sente e não consegue nomear. Então, eu tento. Às vezes erro o tom, às vezes toco onde ninguém quer ser tocado, mas é sempre com o desejo de dizer:
Excluir“você também sente isso?”.
E sim, eu gosto de “cutucar”com afeto. Só pra lembrar que viver anestesiado não combina com a beleza e a dureza de estar vivo.
Mas olha, prometo: se um dia eu te vir sentado demais, trago um texto com espinhos e flor. Só pra garantir o incômodo e a esperança. 😄🌹
Um abraço imenso, com gratidão verdadeira.
Nanda.
Nossa Senhora, essa crônica está linda demais, tocante, emociona qualquer pessoa que não esteja de mal com a vida, de mal com o mundo! Dizes tudo que todos nós também sentimos, amiga.
ResponderExcluirNa verdade, pra viver nesse mundo lindo, mas louco, precisaríamos, de fato, de um Anjo da Guarda diariamente, e com metralhadora! Anjo que nos protegesse dos mal-intencionados, dos insensíveis, dos egoístas, dos oportunistas e daqueles que nunca carregam culpas....que depositam suas amarguras no colo dos outros. Bem, mas aí já estou falando no Paraíso!
Mas como isso é difícil, dou um jeito de me afastar, ou ignorar! Mas algumas mágoas são inevitáveis. Tento esquecer. Porém, quando a culpa é minha, procuro me retratar.
Se nessa altura de nossas vidas deixarmos nos tocar por coisas que magoam, então não tem solução. Por isso que digo, é um exercício diário cuidarmos de nós!
Beijinho, querida, daqui te aplaudindo!
Meu carinho.
Taís, minha querida, que comentário mais acolhedor e verdadeiro… Dá vontade de emoldurar tuas palavras e deixar pendurado no coração pra reler nos dias difíceis. Sim, minha amiga, viver neste mundo lindo e louco exige coragem, fé, sensibilidade e, como bem disseste, um Anjo da Guarda bem armado de lucidez e empatia. Porque tem gente que chega sorrindo e deixa a alma da gente toda desalinhada. E tem aqueles que vão depositando culpa e dor como se a gente fosse lixeira emocional… Mas não somos, nunca fomos.
ResponderExcluirFazer esse exercício de cuidar de nós, como tu disseste, é mesmo diário. É como varrer a casa da alma todo dia um pouquinho, abrir as janelas mesmo quando chove.
E às vezes chove tanto…
Mas seguimos, né? Mais leves, mais firmes, mais conscientes de quem merece entrar e quem só pode, no máximo, bater na porta e ficar do lado de fora.
Recebe meu carinho todo, com aplausos de volta porque teu comentário também me emocionou.
Beijinho com afeto!
😘