Crônica:
Hoje coincidiu. Coincidiu como só o destino, com sua pontualidade desajeitada, sabe fazer: estávamos os dois em casa, sem plantão. Sem sirene, sem mensagens urgentes, sem café entornado às pressas. Só nós, e o sossego que nunca vem anunciado.
A casa, estranhamente calma, parecia até respeitar nosso raro descanso. O relógio não gritou, o celular ficou tímido, e até o vento das janelas, por algum milagre doméstico, resolveu bater palmas baixinho. Achei graça. Fui aproveitar o milagre com a dignidade possível de uma mulher que ama demais, faz demais, sente demais.
E fui ser.
Fui ser a filha: comi mamão cortado em cubinhos, daquele jeito que só meu pai sabe fazer, com uma dose generosa de “não esquece o casaco”. Fui ser a esposa apaixonada: deitei no sofá com a cabeça nas pernas de André, como quem encontra pouso no meio do furacão. Ali, entre as mãos dele que me afagam os cabelos distraidamente, posso até esquecer que o mundo anda meio torto.
E fui ser mãe que é quando me descubro maior do que eu, mais inteira, mais atenta, mais coração do que razão.
E, sem pedir licença, fui todas essas ao mesmo tempo. Como quem junta várias vidas dentro do mesmo corpo e ainda sorri com sobra. Deitada ali, cabeça nas pernas de André e os “pezinhos”😏 hahahaha
enfiados nas pernas do meu pai, eu ri da minha própria geografia. Um triângulo amoroso do bem: amor de pai, amor de homem, amor de mulher. Um equilíbrio meio torto, meio mágico.
Eles riam das minhas manias. Eu ria da sorte de ter a quem chamar de “meus”. E o sofá, aquele cúmplice silencioso, sustentava essa cena como quem entende que amor assim precisa de ser apresentado mesmo que seja um tapete torto e um controle remoto perdido.
E no meio de tudo, pensei: como é bom ser tantas em uma só. Mesmo quando o mundo cansa, mesmo quando ser tudo parece demais, há dias como hoje em que isso se torna cura.
Não é sobre descanso. É sobre pertencimento.
Sobre deitar o corpo e deixar que o afeto carregue o resto.
Hoje coincidiu.
E ainda bem.
Depois, quando a noite chegou devagarinho daquelas que vêm se espreguiçando com preguiça de escurecer André e eu fomos para o quintal. Estava fresco, com cheiro de planta molhada e silêncio bom. Sabe aquele silêncio que não pesa? Que acomoda? Pois era esse.
Sentamos lado a lado, como dois amigos antigos, como dois cúmplices que sobreviveram a muitas segundas-feiras e plantões Estávamos ali: eu, ele e a lua.
A lua, aliás, estava escandalosamente linda. Uma coisa meio exagerada, tipo eu quando me apaixono ou resolvo arrumar o armário às três da manhã. Ela se mostrava inteira, redonda, feito promessa que não falha. André ficou olhando pra ela com aquele ar contemplativo que só ele tem, e eu fiquei olhando pra ele. (Sou mais chegada em contemplar gente do que astro.)
Conversamos sobre tudo e sobre nada. Sobre coisas que já vivemos e outras que nem sabemos se vamos viver. Ele me ouviu, eu ouvi ele. Entre uma frase e outra, ele passou o braço por trás de mim, me puxou pra mais perto, e eu achei que ali estava meu lugar exato no mundo: entre o ombro dele e a brisa que fazia barulho nas folhas.
No final da conversa, do nada porque André tem essa mania de dizer as coisas mais lindas como quem comenta o tempo ele olhou pra mim com uma ternura desavisada e disse:
“Você é preciosa. Graciosa. Linda.”
Eu, claro, fiquei vermelha. Daquele vermelho que começa atrás da orelha e se espalha até o coração. Quis rir, quis esconder o rosto, quis dizer “bobo”, mas fiquei quieta. Porque há palavras que a gente não interrompe. A gente escuta e guarda.
Guardei. Como quem esconde bombom na gaveta e só abre nos dias ruins.
Preciosa. Graciosa. Linda.
Palavras simples. Mas, ditas por ele, viraram medalha no peito.
Naquela noite, fui de novo todas em uma só.
Mas ali, naquele quintal com cheiro de planta, fui, sobretudo, amada.
E isso bastou.
É assim na linda noite: quando o tempo desacelera, quando o coração sossega no compasso do amor que não corre, que não atropela, que simplesmente fica.
No meio das margaridas aquelas que plantei meio sem saber, num impulso romântico de quem ainda acredita no gesto pequeno a poesia fluiu. Não dessas rimadas, de papel e caneta. Mas a outra, a que nasce viva entre os corpos que se entendem no silêncio.
As margaridas estavam quase fechando, sonolentas, mas ainda dispostas a nos assistir. Era como se soubessem que aquilo ali era bonito demais pra passar em branco.
André encostou o queixo no meu ombro, falou baixinho sobre a vida que estamos construindo, sobre os dias bons e os difíceis, sobre o que ainda não entendemos, mas seguimos tentando. E eu, com os olhos úmidos de beleza, quis guardar tudo a voz, a lua, o cheiro das flores, o calor dele, a paz.
A poesia fluiu sem aviso, como as melhores coisas.
Ela escorreu pelo meu sorriso tímido, escorregou no carinho que ele me fazia no rosto, floresceu no chão de terra onde as margaridas insistem em brotar.
E ali, de novo, fui todas.
Fui filha, com cheiro de infância e colo de pai.
Fui mãe, com a ternura ocupando o peito inteiro.
Fui mulher, com desejo e pudor, com vontade de rir e de ficar. E fui a poeta sem papel, sem lápis só com a alma entregue ao instante.
É assim quando a gente ama e é amada: até a noite vira verso. E as margaridas viram testemunha de um amor que, sem esforço, floresce com um beijo!
Fernanda
Assim como bem a definiu o André, uma cronica graciosamente bela Fernanda, onde podemos sentir toda sua emoção e sensibilidade para pequenos movimentos, que fazem grandeza no seu coração.
ResponderExcluirLindo mesmo amiga.
Bjs e paz e feliz domingo para uma semana de levezas e delicadezas com cheiro de frutos maduros nos quintais.
Toninho, querido,
ExcluirQue dom lindo de transformar comentários em pequenos poemas… Que alegria ler suas palavras cheias de afeto, imagem bonita e essa ternura que atravessa a tela.
É isso mesmo: às vezes são só pequenos gestos, olhares breves, frases soltas mas eles ecoam tão fundo que fazem morada no coração da gente.
Obrigada pelo carinho de sempre. Que sua semana também venha assim: leve, doce, madura com cheiro de terra molhada e fruta no ponto.
Um beijo com gratidão,
😘🙏🏻
Lindos momentos de carinho,enlevo, nessa mistura de filha, mãe, esposa, namorada e ainda menina moleca,rs... Adorei!
ResponderExcluirQue venham muitos momentos mais pra vocês assim!
beijos,chica
Chica, querida,
ExcluirAh, você me descreveu todinha nessa mistura de papéis e afetos filha, mãe, esposa… e sim, essa menina moleca que insiste em não ir embora! rs 😊
Que bom ter seu olhar doce por aqui, celebrando comigo esses momentos que aquecem a alma.
Que a vida nos reserve sempre esse enlevo simples e cheio de verdade.
Beijos com carinho e um domingo florido pra você também!
😘🙏🏻