Há dias em que me sinto como Hamlet: parada no meio da vida, segurando um crânio, perguntando a mim mesma se ainda faz sentido continuar tentando entender o mundo. “Ser ou não ser”, dizem que é a grande questão. Mas eu acho que, para nós, os vivos de hoje, a dúvida é outra: sentir ou não sentir.
Shakespeare, se vivesse agora, talvez escrevesse um Hamlet com smartphone. Um príncipe da Dinamarca que passa as madrugadas rolando a tela, fingindo indiferença enquanto o coração se esfarela. O pai não seria um fantasma que surge entre as brumas do castelo, seria uma notificação perdida no meio de tantas outras, lembrando que algo essencial foi esquecido.
E eu penso: o que seria de Hamlet se tivesse terapia? Talvez menos drama, menos filosofia, menos tragédia, mas também menos poesia. Porque há um tipo de dor que nos ensina a pensar, e um tipo de solidão que nos obriga a encontrar palavras. Foi essa solidão, talvez, que fez Shakespeare tão humano: ele não escrevia apenas histórias, escrevia as hesitações da alma.
Entre Hamlet e Shakespeare há uma polidez. Um escreveu o outro, mas ambos são feitos da mesma matéria: dúvida, culpa, espanto. Shakespeare criou Hamlet, mas foi Hamlet quem revelou o quanto Shakespeare também era humano. Um homem observando o mundo e perguntando, em silêncio, se ainda há sentido em continuar acreditando na verdade.
Às vezes, quando estou cansada demais para entender o que sinto, gosto de pensar que há um pedacinho de Shakespeare em cada um de nós, esse olhar que insiste em ver poesia até na tragédia. E há também um pedacinho de Hamlet, esse espanto diante da própria consciência, essa vontade de entender o que somos antes que o palco se feche.
No fundo, talvez sejamos todos isso: personagens tentando lembrar quem escreveu nossa história.
Fernanda
Talvez viver seja isso: representar o papel de Hamlet no palco de Shakespeare, tentando dar sentido ao roteiro enquanto o aplauso ainda não vem.
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depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)