Tem dias em que acordo dentro de um livro de Kafka. O despertador toca, mas não é só o som que me incomoda é o absurdo de tudo: o horário, as tarefas, as mensagens que chegam como insetos zunindo na tela. Há algo de profundamente kafkiano na rotina, essa engrenagem que gira sem que a gente entenda direito o motivo.
Kafka, coitado, só queria viver. Mas a vida o transformava em metáfora o tempo todo. O emprego, o pai, os papéis amarelados… e aquele sentimento de ser sempre pequeno demais diante de uma máquina grande demais. Às vezes penso que ele nunca morreu apenas se espalhou. Está nos e-mails sem resposta, nas filas de espera, nos formulários intermináveis que exigem provar quem somos para ter direito de existir.
A metamorfose dele é a nossa. Acordamos um dia transformados não em insetos, mas em versões burocráticas de nós mesmos. Vivemos preenchendo lacunas, carimbando sonhos, fingindo que entendemos as regras. E quando finalmente achamos que vamos conseguir explicar tudo, o sistema cai.
Mas Kafka também tinha uma ternura escondida no meio do desespero. Havia nele uma doçura tímida, uma esperança frágil como quem sabe que a humanidade é uma tragédia, mas ainda assim oferece flores ao carcereiro. É essa delicadeza que o salva, e talvez nos salve também: a de continuar sensível mesmo quando o mundo nos endurece.
No fim das contas, Kafka não escreveu sobre monstros. Escreveu sobre nós tentando, em vão, manter a alma intacta dentro da engrenagem.
Fernanda
Talvez ser humano seja isso: continuar escrevendo cartas de amor mesmo sabendo que o destinatário é o próprio labirinto.
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depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)