Diário
Hoje fui ao dentista e já começo assim, para dar o devido peso dramático ao acontecimento. Sente-se, respire, e prepare-se para a revelação que abalou uma sala inteira equipada com luzes frias, brocas ameaçadoras e um cheiro constante de menta farmacêutica:
eu ainda tenho dente de leite.
Hahah podem rir 🤣
Sim, tantos cafés, tantos capítulos escritos e reescritos, tantas idas e vindas emocionais… ali permaneceu, silencioso, um pequeno vestígio da infância, firme, fiel e aparentemente sem planos de se mudar. Na verdade, não só um 😳 quatro.
E quem deu a notícia?
O dentista que, por capricho do destino, é também grande amigo de André.
Ou seja: humilhação compartilhada com testemunha garantida.
Ele olhou a radiografia, arregalou os olhos como quem viu um espírito acompanhando meu pré-molar, e decretou com voz de quem anuncia uma profecia:
Fernanda, tenho uma notícia que vai ficar na história. Você tem quatro dentes de leite. Quatro. E todos ficam próximos… próximos dos dois caninos. Me conta, como conseguiu manter os cuidados tão sérios a ponto de guardar essa relíquia até hoje?
Relíquia.
Eu, que nunca ganhei um prêmio escolar por “aluna aplicada”, agora ostento essa: Portadora Oficial de Relíquias Bucais. Hahaha
Fiquei ali, sem jeito, tentando decidir se ria, se me escondia atrás da cadeira ou se perguntava se aquilo poderia render desconto. Minha timidez parecia maior do que todos os dentes os permanentes, os teimosos e os emocionados.
Ele falava com uma empolgação científica, quase querendo me expor numa vitrine do museu da odontologia: Veja, André! Veja isso! É um caso raríssimo! Quatro dentes!
E eu, já imaginando o André me zoando até 2083, só consegui responder:
Acho que eles gostaram de mim. Ficaram.
Talvez meus dentes de leite sejam como algumas memórias daquelas que não se desprendem fácil, que permanecem, mesmo quando o mundo espera que já tenhamos substituído tudo por versões mais adultas, mais alinhadas, mais “corretas”.
Talvez sejam um lembrete de que ainda guardo, entre tantas durezas da vida, um miolo de doçura antiga. Ou talvez seja pura genética, mas, como nao tenho base de nenhum familiar e o orfanato nao deu garantias, gosto mais da versão poética.
Saí do consultório com um protocolo de acompanhamento, uma radiografia dobrada na bolsa e a certeza de que, embora a vida adulta viva tentando nos arrancar tudo ilusões, paciências, amores eu ainda conservo quatro pequenos pedaços da Fernandinha que fui um dia.
E que, por alguma razão, resolveram ficar.🥰
Fernanda

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depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)