Era fim de tarde quando percebi, com certo espanto, que minha xícara de chá já se encontrava vazia. Não porque o chá estivesse particularmente irresistível, mas porque a casa, naquele instante, exigia de mim um silêncio atento, desses que fazem a gente esquecer até do próprio corpo. Havia no ar a serenidade que apenas as horas indecisas entre o dia e a noite costumam oferecer e foi nesse clima de suave contemplação que a história se desenrolou.
Digo “história” apenas por falta de palavra mais adequada, pois se tratou de um episódio tão pequeno que, aos olhos do coração menos sentimental, poderia ser ignorado. No entanto, a mim que sempre tive certa inclinação para perceber grandeza nas minúcias pareceu digno de registro.
A campainha tocou.
Imaginei tratar-se de algum engano, já que não havia prometido visita a ninguém, tampouco esperava alguma surpresa do destino. Mas, por educação e por mera curiosidade, fui atender.
À porta estava a senhora Marcondes, minha vizinha de duas casas adiante, de expressão levemente aflita, como quem carrega uma preocupação que tenta disfarçar com decoro. Trouxera nas mãos um embrulho pequeno nada mais que um pote de geleia de pêssego e um pedido maior do que admitia.
Minha querida Fernanda, disse ela, num tom que misturava urgência e delicadeza, preciso pedir-lhe um favor que, espero, não lhe causará incômodo.
Ora, se existe coisa que me enternece é quando alguém me procura com essa combinação de timidez e confiança. Respondi-lhe, portanto, com a mansidão que a situação requeria.
Pois não, minha querida senhora. Em que posso ser útil?
Ela explicou, então, que receberia visitas inesperadas naquela mesma noite e que a geladeira, traidora habitual, resolvera falhar justamente agora. Pedia-me apenas que guardasse ali o pote de geleia sua única arma culinária para impressionar as sobrinhas até que pudesse buscá-lo.
Aceitei com prazer, não por qualquer sentimento de heroísmo doméstico, mas porque acredito que a gentileza, quando oferecida a alguém sensível o bastante para reconhecê-la, torna-se um pequeno luxo.
Ao entregar-me o pote, ela soltou um suspiro tão profundo que quase me convenceu de que eu havia salvado sua reputação inteira perante as sobrinhas.
Quando ela se retirou, fechei a porta com leveza e voltei a minha cadeira próxima à janela. O entardecer prosseguia com doçura, e eu, de certo modo, senti que aquela pequena cena tinha iluminado meu espírito mais do que o sol que já se escondia.
Pensei, com um sorriso discreto, que talvez a vida fosse composta essencialmente de momentos assim: minúsculos, quase abstratos, mas que revelam o caráter das pessoas e da própria convivência humana.
Se a senhora Marcondes recuperou sua geleia? Claro que sim.
Se as sobrinhas a elogiaram? Tenho certeza.
Mas o que eu guardo mais que o pote na geladeira é a certeza de que, quando alguém bate à nossa porta com esperança, a melhor resposta é sempre abrir.
E, convenhamos, poucas coisas são tão agradáveis quanto servir de pequena providência na vida alheia. Jane Austen, se pudesse, certamente concordaria comigo.😉
Fernanda

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depois que a letra nasce
não há silêncio
há um choro que só eu ouço
e um medo que ninguém vê
o medo de mostrar demais
de sangrar diante de estranhos
de ser lida com desdém
ou pior: com pressa
porque parir palavras
é também deixar o peito aberto
num mundo que não sabe lidar
com quem sente fundo
a escrita respira fora de mim
e eu, nua, assisto
alguns dizem que é lindo
outros nem leem até o fim
há quem tente vestir meu poema
com a própria assinatura
como se dor fosse transferível
como se parto tivesse atalho
e é aí que mais dói
quando roubam o nome da minha filha
e fingem que nasceu de outra boca
quando arrancam o umbigo do texto
e dizem: “isso é meu”
não é
eu sei cada madrugada que ela levou
cada perda que empurrou esse verso
cada lágrima que virou frase
não quero aplauso
mas exijo respeito
porque minha escrita
anda no mundo com meu rosto
meus olhos, minha história
e quando alguém a toma como se fosse nada
está me dizendo:
“você também é nada”
mas eu sou tudo
o que ninguém teve coragem de escrever
e continuo parindo
mesmo ferida
porque escrever é a única forma
que conheço de sobreviver
(Fernanda)